numa cidade há um milhão de pessoas, noutra outros milhões;
algumas cidades são tão distantes que numa é verão e noutra é inverno.
em cada uma dessas cidades há pessoas a falar línguas
diversas, percorrendo ruas distintas e a pensar em outras pessoas, talvez até
noutras de alguma cidade diferente. quantas delas não cultivam dentro de si em
segredo uma paixão distante? cada uma delas tem em torno de si inumeráveis
olhos e vozes, uma rotina habitual, presenças físicas constantes e conhecidas
mas há alguém noutra cidade que faz parte do seu pensamento tanto quanto o
resto. eles não se telefonam mais, nem se escrevem.
escreviam em tempos textos que chegavam a vibrar no bolso e
que aqueciam o coração.
textos que falavam em sentimentos mas que não sentem mais.
agora os dias passam de forma lenta e assustadora, enquanto
as mãos de um gelam e as do outro por lá aquecem; o domingo já chegou mal chega
a noite de sábado e lá vem de seguida a segunda a preparar para mais uma semana
agoniante sem o tal vibrar habitual.
sim, haviam frases cheias de luz. mas a vida trai-nos e o
coração também.
os astrónomos dizem que muitas vezes ficamos a observar as
estrelas jurando pela sua existência, quando na verdade há séculos que elas já
se apagaram na escuridão do caos. mas nunca importa a estrela e sim a luz que
ela irradia.
então a pessoa não está ao nosso lado, não se vê a passar na
rua, não se ouve ao longe, não se lhe toca no cabelo ou lhe agarra pelo corpo,
não há presença física quente ao nosso lado mas sente-se calor dentro de nós na
mesma. a pessoa vira fotografia no telemóvel, borboleta perdida dentro de nós,
brisa que recebemos no rosto, ecos, sombras, memórias, algo que
adoramos e queremos. mas ela não nos quer, não está aqui, não
nos ouve, nem nos sente. ela vira poeira dolorosa que custa a limpar, voz a
ecoar na mente que não se quer calar, pesadelo durante a noite quando já teria
sido sonho, um fantasma que nos acompanha se for necessário para o resto da
vida.
(adaptado do texto de Rubem Braga)
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