24 de novembro de 2016

numa cidade há um milhão de pessoas, noutra outros milhões; algumas cidades são tão distantes que numa é verão e noutra é inverno.
em cada uma dessas cidades há pessoas a falar línguas diversas, percorrendo ruas distintas e a pensar em outras pessoas, talvez até noutras de alguma cidade diferente. quantas delas não cultivam dentro de si em segredo uma paixão distante? cada uma delas tem em torno de si inumeráveis olhos e vozes, uma rotina habitual, presenças físicas constantes e conhecidas mas há alguém noutra cidade que faz parte do seu pensamento tanto quanto o resto. eles não se telefonam mais, nem se escrevem.
escreviam em tempos textos que chegavam a vibrar no bolso e que aqueciam o coração.
textos que falavam em sentimentos mas que não sentem mais.
agora os dias passam de forma lenta e assustadora, enquanto as mãos de um gelam e as do outro por lá aquecem; o domingo já chegou mal chega a noite de sábado e lá vem de seguida a segunda a preparar para mais uma semana agoniante sem o tal vibrar habitual.
sim, haviam frases cheias de luz. mas a vida trai-nos e o coração também.
os astrónomos dizem que muitas vezes ficamos a observar as estrelas jurando pela sua existência, quando na verdade há séculos que elas já se apagaram na escuridão do caos. mas nunca importa a estrela e sim a luz que ela irradia.
então a pessoa não está ao nosso lado, não se vê a passar na rua, não se ouve ao longe, não se lhe toca no cabelo ou lhe agarra pelo corpo, não há presença física quente ao nosso lado mas sente-se calor dentro de nós na mesma. a pessoa vira fotografia no telemóvel, borboleta perdida dentro de nós, brisa que recebemos no rosto, ecos, sombras, memórias, algo que adoramos e queremos. mas ela não nos quer, não está aqui, não nos ouve, nem nos sente. ela vira poeira dolorosa que custa a limpar, voz a ecoar na mente que não se quer calar, pesadelo durante a noite quando já teria sido sonho, um fantasma que nos acompanha se for necessário para o resto da vida.
 (adaptado do texto de Rubem Braga)

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